É incrível como esse jeito atual de viver em sociedade transformou a minha criança corajosa em uma adulta cheia de temores. Eu nunca fui uma menina medrosa, sempre dormi no escuro, topava ficar em casa sozinha, brigava com qualquer menina ou menino no colégio, não achava que o velho do saco ou a mulher da trouxa iriam me pegar se eu fizesse algo errado e caía na risada vendo filmes de terror. Talvez a maneira de criar filhos da minha mãe – que nunca optou pela pedagogia do medo – tenha feito com que eu crescesse assim, um tanto destemida apesar de responsável e respeitosa.
Mas aí a gente cresce e se joga num mundo cheio de tanta miséria e mentira que fica difícil meter as caras sem temer. Eu não falo só do medo de ser assaltada, estuprada ou decapitada. Não é só a vida urbana marcada por desigualdades gritantes que se traduzem, dentro tantas outras maneiras, na violência. É verdade que isso também levou boa parte da minha segurança da infância. Porém, isso é passível de solução mediante um comprometimento do governo e da sociedade civil, para que todos possam ter acesso ao mínimo e deixemos de produzir crianças para serem cooptadas pela marginalidade.
O que me assusta também é que existe, hoje, um medo imenso e monstruoso do outro. De repente o mundo pirou e se tornou simplesmente impossível acreditar e, principalmente, confiar no ser humano. As pessoas deixaram de ser pessoas e viraram personagens esquisitos que confundem nossas cabeças. Pelo menos a minha. E isso me faz ter medo. Muito medo. Os valores, os conceitos, as noções, tudo me parece incompreensível.
Vivemos de sobressalto. É muita inveja, muito egoísmo, muita falsidade, muita falta de consideração, de amizade, de amor, de respeito. É muita falta de tudo. E ainda a amarga impressão de estar sozinho ou reduzido a uma ilha de sentimentos um pouco mais “humanos”. Se você se preocupa com os outros, não mente e não quer tirar proveito de tudo, vira um ser extraterrestre, um alienígena. O mundo é dos espertos, dos que enganam os outros por mais tempo, dos que sabem tirar vantagem. Como assim? É tudo muito louco.
Às vezes acho que caminhamos para trás, para o tempo em que nós morávamos em cavernas e brigávamos de quatro no meio do mato por um pedaço de comida. Um tempo no qual cada um só lutava pela sua sobrevivência, sem se preocupar com as vontades ou as necessidades alheias. Estamos retrocedendo. E se ser gente é isso, eu tenho é medo de ser gente.
Nao tinha visto esse...muito bom!Ta dificil acreditar nos outros mesmo,cada dia mais.
ResponderExcluirEstava lendo seu post e achei muito interessante e muito verdadeira a sua observação sobre medo que vai se enraizando nas pessoas à medida em que elas crescem (no texto você fala de sua experiência, mas digo “nas pessoas” porque também vejo esse medo em mim e em algumas pessoas). Quando cheguei ao fim do texto, pensei que as pessoas não pioraram com o passar tempo, acredito que continuamos sim vivendo naquelas cavernas agindo de maneira desmedida e instintiva, porém de maneira mais lapidada e/ou engenhosa quer seja em busca de comida, de um emprego que ganhe mais dinheiro, de tecnologia ou de qualquer outra necessidade que inventamos para continuarmos nos sentindo importantes e dominadores. Creio que hoje em dia devido às influências religiosas, questões sociológicas ou até o popular agir de maneira correta nos incitam a procurarmos pensar e articular outras maneiras de causar o mal a outrem e isso nos faz pensar que a humanidade piorou e o pior é que deixa claro a grande capacidade que o ser humano tem de criar mecanismos de deixar a realidade que poderia ser simples e prazerosa ainda pior e insegura.
ResponderExcluirAgradeço os comentários. Me entristece o fato de que isso é realidade e não pura paranoia da minha cabeça. Sem dúvidas, nas cavernas nós conseguíamos ser menos piores do que somos hoje.
ResponderExcluirEntendo perfeitamente o seu "medo de ser gente" e confesso que sinto até falta dos inocentes medinhos da infância. que falta faz a velha do saco diante de um mundo tão selvagem...
ResponderExcluir